Opinião: Gastando 1,6% do nosso PIB e considerado o mais caro do mundo, o papel do Judiciário brasileiro é promover a desigualdade social -

Opinião: Gastando 1,6% do nosso PIB e considerado o mais caro do mundo, o papel do Judiciário brasileiro é promover a desigualdade social

Em apenas 24 segundos, o Tribunal de Justiça da Paraíba (TJ-PB) aprovou, no último dia 26 de fevereiro, um pagamento retroativo de R$ 234 milhões para juízes e desembargadores, sob o pretexto de “compensação por assunção de acervo processual”. São 281 magistrados beneficiados, alguns embolsando até R$ 956 mil cada — um valor que, para a imensa maioria dos brasileiros, representa uma fortuna inalcançável, fruto de décadas de trabalho árduo ou, mais provavelmente, de uma loteria que nunca chega. Enquanto isso, o trabalhador comum, aquele que sustenta o país com suor e pouco mais de R$ 1.500 por mês para alimentar uma família inteira, assiste a mais um capítulo da novela em que a elite do funcionalismo público garante que seu pirão venha primeiro.

Não é novidade que o Judiciário brasileiro, em suas altas esferas, opera como um clube exclusivo, onde os interesses dos seus membros parecem sempre prevalecer sobre as necessidades de uma nação marcada por abismos sociais. Esse episódio na Paraíba é apenas mais uma demonstração escancarada de que, para muitos dos que vestem a toga, a luta contra a desigualdade social não passa de um discurso bonito, algo para ser recitado em campanhas publicitárias ou em eventos pomposos de autopromoção. Fora das câmeras e dos holofotes, a realidade é outra: a barriga dos magistrados precisa estar cheia antes que se pense nos milhões de brasileiros que sobrevivem com migalhas.

Vamos aos números, porque eles gritam o que as palavras às vezes suavizam. Um juiz em início de carreira na Paraíba tem um salário base de R$ 35.877,28, sem contar os benefícios — os famosos “penduricalhos” — que frequentemente elevam os rendimentos líquidos para mais de R$ 50 mil por mês. Compare isso com o trabalhador que ganha o salário mínimo ou pouco acima disso, cerca de R$ 1.500, e tenta sustentar uma casa com filhos, pagar aluguel, comida e transporte. São realidades que não se encontram nem em sonho. Enquanto o TJ-PB justifica os R$ 234 milhões como um “direito” por sobrecarga de trabalho entre 2015 e 2022, o cidadão comum acumula dívidas, filas no SUS e uma sobrecarga de vida que ninguém indeniza.

E o que dizer da velocidade da decisão? Vinte e quatro segundos. Em menos de meio minuto, o tribunal aprovou unanimemente um montante que equivale a mais de 25% de seu orçamento anual, previsto em R$ 914 milhões para 2025. É uma agilidade que nunca se vê quando o assunto é garantir direitos básicos à população mais pobre, como acesso à justiça gratuita ou redução das custas processuais que afastam os vulneráveis do Judiciário. Harrison Targino, presidente da OAB na Paraíba, foi preciso ao apontar a contradição: o tribunal alega dificuldades financeiras para justificar altas custas e negativas de gratuidade, mas, de tempos em tempos, surpreende com pacotes de benefícios milionários para os seus. É o “pirão primeiro” em sua forma mais crua.

Esse caso não é um ponto fora da curva. Ele reflete um padrão no Judiciário brasileiro, onde os privilégios da elite do funcionalismo público são mantidos a ferro e fogo, enquanto a desigualdade social — que atinge 50 milhões de brasileiros na pobreza, segundo o IBGE — é tratada como um problema secundário. Os R$ 234 milhões da Paraíba poderiam triplicar o orçamento da Educação Infantil no estado ou dobrar os investimentos em saneamento básico, áreas que diretamente impactam a vida dos mais pobres. Mas não. O dinheiro público, aquele que sai do bolso do contribuinte que mal tem o que comer, vai para engordar as contas de quem já vive no topo da pirâmide.

(Cristiano Mariz/VEJA)

A justificativa oficial, amparada na Recomendação 75/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e em leis federais de 2015, soa como uma tentativa de dar verniz legal a uma farra indefensável. Fala-se em “correção de omissões históricas” e “direitos atrasados”, mas onde está a correção das omissões históricas com os milhões de brasileiros que nunca tiveram acesso a direitos básicos como saúde, moradia e educação? Onde está o retroativo para as famílias que, há gerações, lutam para sobreviver em um país que insiste em priorizar os seus castelos em vez das suas favelas?

Como alguém que milita há anos contra essa lógica perversa, vejo nesse episódio mais uma prova de que o Judiciário, em muitos momentos, está desconectado da realidade do povo. Não é só sobre os R$ 234 milhões da Paraíba; é sobre um sistema que, em 2023, custou R$ 132,8 bilhões aos cofres públicos — 1,2% do PIB —, enquanto a arrecadação via Justiça mal cobre metade disso. É sobre um Judiciário que paga supersalários e retroativos milionários enquanto o Brasil amarga um índice de Gini que nos coloca entre os países mais desiguais do mundo. Para eles, a desigualdade é um tema de palestra; para nós, é a vida real.

Chega de aceitar que a elite do funcionalismo público surfe em privilégios enquanto os mais pobres afundam. É hora de exigir que o Judiciário pare de se comportar como uma casta intocável e comece a olhar para o Brasil que existe além dos seus palácios. Porque, enquanto os magistrados brindam seus retroativos, o pirão dos pobres continua sendo só o resto que sobra na panela — quando sobra.

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