Na manhã de 16 de março de 1990 — há exatos 35 anos, considerando a data atual de 15 de março de 2025 —, os brasileiros foram pegos de surpresa por uma das medidas econômicas mais drásticas da história do país: o Plano Collor. Anunciado no primeiro dia do governo de Fernando Collor de Mello, o pacote confiscou cerca de 80% das poupanças e contas correntes acima de 50 mil cruzados novos (equivalentes a aproximadamente R$ 1.300 em valores corrigidos), deixando milhões de cidadãos sem acesso ao próprio dinheiro. O que era para ser uma solução heroica contra a hiperinflação virou um trauma coletivo, marcando a memória de uma geração e expondo as fragilidades de um sistema econômico à beira do colapso.

O contexto: um Brasil sufocado pela hiperinflação
Na virada da década de 1980 para 1990, o Brasil vivia um caos econômico. A hiperinflação alcançava níveis alarmantes, com índices mensais de até 80% em fevereiro de 1990, segundo o IBGE. Os preços mudavam várias vezes ao dia: um litro de leite podia custar 50 cruzados novos de manhã e 70 à tarde. Salários perdiam valor antes mesmo de chegar às mãos dos trabalhadores, e o poder de compra evaporava em questão de horas. Após o fracasso de planos anteriores, como o Cruzado (1986) e o Verão (1989), a população depositava esperanças no jovem presidente Collor, eleito em 1989 com 35 anos e um discurso de modernização e combate aos “marajás” — servidores públicos com supersalários.

Collor assumiu em 15 de março de 1990 e, menos de 24 horas depois, lançou o plano econômico que levaria seu nome. Sob o comando da ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, a estratégia prometia “matar a inflação com um único tiro”. O principal alvo era o excesso de liquidez na economia, que o governo atribuía à especulação financeira e à circulação desenfreada de dinheiro. A solução? Bloquear os recursos dos brasileiros nos bancos.
O confisco: um choque nacional
O Plano Collor foi detalhado em uma edição extra do Diário Oficial da União e anunciado em cadeia nacional na noite do dia 15. A partir das 0h do dia 16, todas as contas correntes, poupanças e aplicações financeiras acima de 50 mil cruzados novos foram congeladas por 18 meses. O governo liberou apenas esse valor — cerca de R$ 1.300 atuais — por pessoa, com o restante retido em contas do Banco Central, prometendo devolução com correção monetária após o período. A moeda também mudou: o cruzado novo deu lugar ao cruzeiro, com corte de três zeros (1.000 cruzados novos = 1 cruzeiro).

O impacto foi imediato. Nas primeiras horas do dia 16, filas enormes se formaram em agências bancárias, com cidadãos tentando sacar o pouco que podiam antes que os sistemas travassem. Pequenos comerciantes, como donos de padarias e oficinas, viram o fluxo de caixa desaparecer, enquanto famílias que guardavam economias para emergências ou investimentos — como a compra de um carro ou uma casa — ficaram de mãos vazias. “Eu tinha 120 mil cruzados novos na poupança pra pagar a faculdade do meu filho. No dia 16, só consegui sacar 50 mil. O resto sumiu”, conta Maria Helena Santos, hoje com 72 anos, em entrevista recente ao O Globo.
O confisco atingiu R$ 110 bilhões em ativos financeiros, equivalente a 30% do PIB da época (cerca de US$ 35 bilhões). Para se ter ideia, em valores atuais, corrigidos pelo IPCA, isso representaria mais de R$ 700 bilhões. O dinheiro bloqueado foi redirecionado para financiar políticas públicas, como infraestrutura e habitação, mas grande parte acabou servindo para cobrir déficits do governo, segundo analistas econômicos da época.
A reação: desespero e adaptação
A população reagiu com uma mistura de pânico, revolta e criatividade. Nos dias seguintes, os bancos limitaram os saques, e o comércio viu as vendas despencarem. Muitos brasileiros passaram a estocar bens duráveis — como eletrodomésticos, carros e até alimentos não perecíveis — para proteger o pouco que restava do confisco. “Comprei uma geladeira que eu nem precisava, só pra não deixar o dinheiro parado”, lembra José Silva, de Feira de Santana, hoje com 68 anos.

Empresas de pequeno e médio porte foram duramente afetadas. Sem capital de giro, muitas fecharam as portas, enquanto outras recorreram ao mercado informal, trocando cheques pré-datados ou aceitando pagamento em mercadorias. O desemprego disparou, e a recessão econômica se aprofundou, com o PIB caindo 4,3% em 1990, uma das maiores contrações da história recente do país.
O plano também incluiu outras medidas, como o congelamento de preços e salários, a extinção de órgãos públicos e a abertura comercial, com redução de tarifas de importação. No entanto, essas ações tiveram efeito limitado. A inflação caiu para 12% em abril de 1990, mas voltou a subir nos meses seguintes, fechando o ano em 1.585% acumulados, segundo o Ipea. O confisco, que deveria “secar” a economia, acabou gerando desconfiança generalizada nos bancos, com brasileiros guardando dinheiro em casa ou investindo em ouro e dólar no mercado paralelo.
O fracasso e as sequelas
O Plano Collor não entregou o prometido. A hiperinflação só seria controlada anos depois, com o Plano Real, em 1994, sob Fernando Henrique Cardoso. Em vez de estabilizar a economia, a medida de 1990 aprofundou a crise social e política. Collor enfrentou protestos massivos e denúncias de corrupção, culminando em seu impeachment em 1992, após a revelação de um esquema envolvendo seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias. Zélia Cardoso deixou o governo em maio de 1991, sob críticas de todos os lados.

As sequelas foram duradouras. Milhares de cidadãos entraram na Justiça para reaver o dinheiro confiscado, em processos que se arrastaram por décadas. Em 2002, o STF declarou o confisco constitucional, mas reconheceu o direito à correção monetária plena, algo que o governo não conseguiu cumprir integralmente devido à desvalorização da moeda. Até hoje, ações residuais tramitam nos tribunais, com herdeiros buscando indenizações pelos prejuízos de seus pais e avós.
Na memória popular, o Plano Collor virou sinônimo de traição e insegurança. “Até hoje, minha mãe diz pra não confiar em banco. Ela perdeu tudo em 1990”, conta Mariana Costa, de 42 anos, em Feira de Santana. Estudos sociológicos, como o livro O Trauma do Confisco (Editora Unesp, 2010), apontam que o episódio moldou uma geração desconfiada das instituições financeiras e do poder público, influenciando hábitos econômicos até os dias atuais.
Lições para 2025
Passados 35 anos, o Plano Collor segue como um alerta sobre os riscos de medidas econômicas autoritárias e mal planejadas. Em 2025, o Brasil debate ajustes fiscais, como o corte de R$ 7,7 bilhões no Bolsa Família e a proposta de usar o FGTS como garantia de empréstimos, decisões que reacendem o temor de intervenções que afetem diretamente o cidadão comum. A memória do dia em que os brasileiros acordaram sem dinheiro no banco é um lembrete vivo: políticas feitas às pressas, sem diálogo ou transparência, podem custar mais do que o governo imagina — e quem paga a conta, como sempre, é o povo.