O Tribunal de Contas da União (TCU) tomou uma decisão histórica em 19 de fevereiro de 2025, ao estabelecer que presentes de caráter personalíssimo recebidos por presidentes da República durante seus mandatos não integram o patrimônio público, passando a pertencer aos próprios mandatários após o término de seus cargos. A resolução, aprovada por unanimidade em sessão plenária sob a relatoria do ministro Jorge Oliveira, redefine o tratamento dado a itens como joias, relógios, canetas e outros objetos de uso pessoal oferecidos por autoridades estrangeiras ou nacionais, marcando um ponto de virada em uma discussão que se arrastava há anos no Brasil.

A decisão teve origem em um processo que analisava presentes recebidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), incluindo joias avaliadas em milhões de reais, como um kit de diamantes da Chopard e um relógio Rolex ofertados pela Arábia Saudita em 2019. Após denúncias de que Bolsonaro teria tentado incorporar esses itens ao seu patrimônio pessoal sem declaração à Receita Federal, o TCU foi acionado para esclarecer a destinação legal de tais bens. O julgamento, concluído em março de 2025, considerou que objetos de uso íntimo ou personalíssimo — desde que não ostentem valor histórico ou cultural significativo para o Estado — não precisam ser devolvidos ou incorporados ao acervo público.
O que muda com a decisão?
A Corte diferenciou os presentes em duas categorias principais: os de caráter personalíssimo, como roupas, acessórios e itens de uso cotidiano, que agora pertencem ao presidente ou ex-presidente; e os de valor histórico ou simbólico, como obras de arte ou peças representativas da nação, que devem ser mantidos como patrimônio público. O TCU argumentou que a ausência de uma legislação específica sobre o tema justificava a interpretação, baseada em práticas internacionais e em decisões anteriores do próprio tribunal. “Não há norma que obrigue a devolução desses bens. Cabe ao Congresso legislar sobre isso, mas, até lá, nossa decisão vale para todos os casos”, declarou o ministro Oliveira durante a sessão.
O julgamento revisou um entendimento parcial de 2023, quando o TCU analisou presentes recebidos pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e permitiu que ele ficasse com itens personalizados, como uma caneta Montblanc, desde que objetos de grande valor fossem restituídos ao Estado. A nova resolução, porém, elimina a exigência de devolução baseada apenas no valor monetário, focando no critério de “caráter personalíssimo”. Isso significa que, independentemente do preço — como no caso das joias de Bolsonaro, estimadas em R$ 25 milhões —, o presente pode ser retido pelo destinatário se for considerado de uso pessoal.
Contexto e reações
A decisão chega em um momento delicado, com o Brasil acompanhando investigações sobre a conduta de Bolsonaro no caso das joias sauditas, que também envolvem suspeitas de contrabando e sonegação fiscal. O TCU, contudo, deixou claro que sua competência se limita à esfera administrativa, não interferindo em eventuais processos criminais ou tributários. “Nosso papel é definir o destino dos bens, não julgar ilícitos penais”, frisou Oliveira.

A medida gerou reações polarizadas. Parlamentares da oposição, como o deputado André Fernandes (PL-CE), celebraram o resultado, afirmando que “o TCU corrigiu uma injustiça histórica contra Bolsonaro”. Já líderes da base governista, como o senador Humberto Costa (PT-PE), criticaram a decisão, alegando que ela “abre brecha para abusos e enfraquece a transparência”. Organizações civis, como a Transparência Brasil, também manifestaram preocupação, apontando que a falta de critérios objetivos pode beneficiar ex-presidentes em detrimento do interesse público.
No Congresso, a resolução reacendeu o debate sobre a necessidade de uma lei específica. Projetos como o PL 2.345/2023, que tramita na Câmara, propõem que todos os presentes recebidos por autoridades sejam registrados e, caso ultrapassem determinado valor (sugerido em R$ 5 mil), sejam incorporados ao patrimônio público. Até que isso seja votado, a decisão do TCU serve como precedente vinculante para todos os ex-presidentes e futuros mandatários.
Impactos e implicações
Na prática, a determinação do TCU encerra a disputa administrativa sobre as joias de Bolsonaro, permitindo que ele as retenha legalmente, desde que quite eventuais dívidas fiscais relacionadas à importação irregular — um tema que segue sob análise da Receita Federal e do STF. O caso também levanta questões sobre presentes recebidos por outros ex-presidentes, como Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer, que agora podem reivindicar itens sob o mesmo critério.

Especialistas em direito público veem a decisão com cautela. Para o advogado constitucionalista André Ramos Tavares, “o TCU adotou uma interpretação pragmática, mas deixou um vácuo que pode gerar controvérsias futuras”. Ele sugere que a Corte poderia ter condicionado a posse dos bens a uma avaliação independente de seu valor cultural ou histórico, algo que o julgamento não detalhou.
Passados 35 anos do Plano Collor, que confiscou poupanças e abalou a confiança dos brasileiros no Estado, a decisão do TCU reacende discussões sobre o uso de bens públicos e privados no Brasil. Enquanto o país reflete sobre os rumos de sua governança, o destino de relógios e diamantes carrega um peso simbólico: o equilíbrio entre o público e o pessoal ainda está longe de ser resolvido.